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Câncer não espera: até onde vai a responsabilidade do Estado no tratamento precoce?

O diagnóstico precoce do câncer é, indiscutivelmente, um dos pilares

centrais na luta pela vida. A detecção em estágios iniciais é determinante para o

sucesso do tratamento e a preservação da qualidade de vida do paciente. No

entanto, a negligência administrativa no fornecimento tempestivo de

exames e terapias adequadas frequentemente compromete esse direito

essencial, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS), configurando grave

violação à ordem constitucional.


Fundamento Constitucional e os Princípios da Administração Pública


O artigo 196 da Constituição Federal estabelece de forma clara:

“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante

políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e

de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços

para sua promoção, proteção e recuperação.”

Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da

CF) constitui fundamento da República, sendo transversal a todos os serviços

públicos, em especial à saúde. A demora ou negativa na realização de exames

e no início do tratamento oncológico viola não apenas a legalidade

administrativa, mas a própria essência da proteção constitucional à vida e

à integridade física e psicológica do cidadão.


No plano da Administração Pública, aplica-se o art. 37 da Constituição

Federal, que impõe os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência — sendo a prestação do serviço de saúde vinculada à

observância estrita desses preceitos.


Leis específicas que reforçam o direito ao tratamento precoce


1. Lei dos 60 Dias (Lei nº 12.732/2012)

Determina que o tratamento de câncer deve ser iniciado em até 60 dias após

o diagnóstico da neoplasia maligna, no âmbito do SUS. O descumprimento

dessa norma configura violação direta ao dever legal da Administração.


2. Lei dos 30 Dias (Lei nº 13.896/2019)

Complementando o arcabouço protetivo, essa norma obriga o SUS a

realizar exames diagnósticos de câncer no prazo máximo de 30 dias após

solicitação médica fundada em suspeita da doença. A omissão nesse ponto

compromete o diagnóstico precoce e agrava o quadro clínico do paciente.


Essa lei representa a efetivação do direito à prevenção e à vida digna,

assegurando celeridade mínima necessária diante de uma doença que evolui de

forma acelerada e fatal.


3. Direito de acompanhante da mulher (Lei nº 14.737/2023)

A mulher tem direito de ser acompanhada em consultas, exames e

procedimentos de saúde, inclusive durante o tratamento de câncer. Tal medida

visa assegurar acolhimento humanizado, proteção emocional e autonomia

da paciente, e integra o direito à saúde em sua dimensão biopsicossocial.


Responsabilidade do Estado no Direito Administrativo


No campo do Direito Administrativo, a responsabilidade civil do Estado

é objetiva, fundamentada no art. 37, §6º da CF/88, com base na Teoria do Risco

Administrativo. Assim, basta a comprovação do dano e do nexo causal entre a

omissão estatal e o agravamento do estado clínico do paciente.


O Estado, mesmo tendo estrutura legal, técnica e orçamentária, falha em

garantir políticas públicas eficazes e tempestivas para a prevenção e o

combate ao câncer.


Omissão que custa vidas: falha do serviço público


A omissão administrativa se manifesta na prática por:

  • Falta de leitos e equipamentos para exames;

  • Demora em regular cirurgias e iniciar quimioterapias;

  • Burocracia excessiva para autorização de procedimentos;

  • Ausência de orientação, apoio psicológico e assistência básica.

Cada uma dessas falhas representa quebra do dever de atuação positiva

do Estado, o qual deve agir de forma planejada, contínua e acessível para

garantir o direito à saúde em sua máxima efetividade.


Política pública não é opção: é obrigação legal


O Estado não pode alegar falta de recursos como justificativa para o

descumprimento de deveres essenciais. O Supremo Tribunal Federal já afirmou

que direitos fundamentais, como o acesso à saúde, têm aplicação imediata

(art. 5º, §1º da CF/88).


Assim, é papel da Administração implementar:

  • Programas de rastreamento oncológico regulares;

  • Regulação eficiente de exames e tratamento;

  • Infraestrutura compatível com a demanda populacional;

  • Atendimento humanizado e contínuo às mulheres em tratamento.

A luta contra o câncer começa com o diagnóstico precoce. Quando o

Estado falha em garantir o acesso a exames, laudos, consultas e terapias no

tempo certo, ele não apenas viola a Constituição, mas compromete vidas.

Sob a perspectiva do Direito Administrativo, a responsabilidade estatal é

clara: cabe à Administração Pública organizar, manter e fiscalizar um sistema de

saúde eficiente, justo e digno.

Câncer não espera. O Estado também não pode. O compromisso com

a vida exige mais do que leis: exige cumprimento, respeito e eficiência. Enquanto

isso não acontece plenamente, o Judiciário continua sendo instrumento legítimo

de efetivação dos direitos e garantias fundamentais.


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Dra. Poliana Leite – Advogada Especialista em Direito Administrativo e Direito Militar - @advpolianaleite

 
 
 

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