Câncer não espera: até onde vai a responsabilidade do Estado no tratamento precoce?
- ticianamentorajuri
- 24 de jun.
- 3 min de leitura
O diagnóstico precoce do câncer é, indiscutivelmente, um dos pilares
centrais na luta pela vida. A detecção em estágios iniciais é determinante para o
sucesso do tratamento e a preservação da qualidade de vida do paciente. No
entanto, a negligência administrativa no fornecimento tempestivo de
exames e terapias adequadas frequentemente compromete esse direito
essencial, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS), configurando grave
violação à ordem constitucional.
Fundamento Constitucional e os Princípios da Administração Pública
O artigo 196 da Constituição Federal estabelece de forma clara:
“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e
de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.”
Além disso, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da
CF) constitui fundamento da República, sendo transversal a todos os serviços
públicos, em especial à saúde. A demora ou negativa na realização de exames
e no início do tratamento oncológico viola não apenas a legalidade
administrativa, mas a própria essência da proteção constitucional à vida e
à integridade física e psicológica do cidadão.
No plano da Administração Pública, aplica-se o art. 37 da Constituição
Federal, que impõe os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,
publicidade e eficiência — sendo a prestação do serviço de saúde vinculada à
observância estrita desses preceitos.
Leis específicas que reforçam o direito ao tratamento precoce
1. Lei dos 60 Dias (Lei nº 12.732/2012)
Determina que o tratamento de câncer deve ser iniciado em até 60 dias após
o diagnóstico da neoplasia maligna, no âmbito do SUS. O descumprimento
dessa norma configura violação direta ao dever legal da Administração.
2. Lei dos 30 Dias (Lei nº 13.896/2019)
Complementando o arcabouço protetivo, essa norma obriga o SUS a
realizar exames diagnósticos de câncer no prazo máximo de 30 dias após
solicitação médica fundada em suspeita da doença. A omissão nesse ponto
compromete o diagnóstico precoce e agrava o quadro clínico do paciente.
Essa lei representa a efetivação do direito à prevenção e à vida digna,
assegurando celeridade mínima necessária diante de uma doença que evolui de
forma acelerada e fatal.
3. Direito de acompanhante da mulher (Lei nº 14.737/2023)
A mulher tem direito de ser acompanhada em consultas, exames e
procedimentos de saúde, inclusive durante o tratamento de câncer. Tal medida
visa assegurar acolhimento humanizado, proteção emocional e autonomia
da paciente, e integra o direito à saúde em sua dimensão biopsicossocial.
Responsabilidade do Estado no Direito Administrativo
No campo do Direito Administrativo, a responsabilidade civil do Estado
é objetiva, fundamentada no art. 37, §6º da CF/88, com base na Teoria do Risco
Administrativo. Assim, basta a comprovação do dano e do nexo causal entre a
omissão estatal e o agravamento do estado clínico do paciente.
O Estado, mesmo tendo estrutura legal, técnica e orçamentária, falha em
garantir políticas públicas eficazes e tempestivas para a prevenção e o
combate ao câncer.
Omissão que custa vidas: falha do serviço público
A omissão administrativa se manifesta na prática por:
Falta de leitos e equipamentos para exames;
Demora em regular cirurgias e iniciar quimioterapias;
Burocracia excessiva para autorização de procedimentos;
Ausência de orientação, apoio psicológico e assistência básica.
Cada uma dessas falhas representa quebra do dever de atuação positiva
do Estado, o qual deve agir de forma planejada, contínua e acessível para
garantir o direito à saúde em sua máxima efetividade.
Política pública não é opção: é obrigação legal
O Estado não pode alegar falta de recursos como justificativa para o
descumprimento de deveres essenciais. O Supremo Tribunal Federal já afirmou
que direitos fundamentais, como o acesso à saúde, têm aplicação imediata
(art. 5º, §1º da CF/88).
Assim, é papel da Administração implementar:
Programas de rastreamento oncológico regulares;
Regulação eficiente de exames e tratamento;
Infraestrutura compatível com a demanda populacional;
Atendimento humanizado e contínuo às mulheres em tratamento.
A luta contra o câncer começa com o diagnóstico precoce. Quando o
Estado falha em garantir o acesso a exames, laudos, consultas e terapias no
tempo certo, ele não apenas viola a Constituição, mas compromete vidas.
Sob a perspectiva do Direito Administrativo, a responsabilidade estatal é
clara: cabe à Administração Pública organizar, manter e fiscalizar um sistema de
saúde eficiente, justo e digno.
Câncer não espera. O Estado também não pode. O compromisso com
a vida exige mais do que leis: exige cumprimento, respeito e eficiência. Enquanto
isso não acontece plenamente, o Judiciário continua sendo instrumento legítimo
de efetivação dos direitos e garantias fundamentais.

Dra. Poliana Leite – Advogada Especialista em Direito Administrativo e Direito Militar - @advpolianaleite



Comentários